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O amor grego, companheirismo guerreiro
Eis aí uma
temática que nos chama atenção. Em nossa época a figura do guerreiro é
freqüentemente associada a do homem heterossexual que age de maneira bruta e
incessível com os outros. Essa figura não pode demonstrar nenhum tipo de afeto,
principalmente com relação a outro homem. É de conhecimento geral a visão
preconceituosa em relação ao homossexualismo. A primeira coisa a ser
esclarecida é que a pederastia na antiguidade grega não corresponde
integralmente ao homossexualismo de nossos tempos, não se trata de sinônimos. A
relação pederástica tinha um papel pedagógico, não durava para toda a vida e
não desobrigava de contrair matrimônio. A pederastia tinha como principal
finalidade educar heróis, heróis na visão homérica, capazes de cumprir seus
deveres civis e militares de forma cavalheiresca. Tudo isso não significa que
essas relações fossem desprovidas de sentimentos: o afeto, o companheirismo
tinham um papel importante, afinal era através disso que o jovem se ligava ao
mais velho e, por conseqüência, as lições por este ensinadas.
A moral pederástica
Como já se disse
a pederastia não se limitava a uma relação carnal, mais do que isso, era
através dela que se dava a moralização.
Inicialmente, o amor grego contribuiu para dar sua
forma ao ideal moral que se arroga tôda a prática da educação helênica, ideal
cuja análise comecei a propósito de Homero: o desejo, no mais velho, de
afirmar-se aos olhos de seu amado, de brilhar diante dêle, e o desejo
simétrico, no mais môço, de mostrar-se digno de seu amante, só lograram
reforçar, num e noutro, êste amor da glória que todo espírito agonístico
exaltava por tôda parte: a ligação amorosa é o terreno de escolha em que se
depara uma generosa emulação. Por outro lado, é tôda a ética cavalheiresca,
fundada sôbre o sentimento de honra, que reflete o ideal de um companheirismo
de combate. A tradição antiga é unânime em ligar a prática da pederastia à
bravura e à coragem. (p. 55)
O amor viril, método de pedagogia
Nesse contexto
educativo o educador (erasto) tem que se apresentar como um modelo para o seu
educando (erômeno) a fim de que este deseje se igualar ao primeiro.
A relação
passional, o amor (que Sócrates já distingue do desejo sexual e a êle opõe)
implica o desejo de assomar a uma perfeição superior, a um valor ideal, [...].
Não me refiro ao efeito nobilitante que pode exercer sôbre o mais velho, sôbre
o erasto, o sentimento de ser admirado: o aspecto educativo da ligação amorosa
concerne, evidentemente, sobretudo ao parceiro mais jovem, ao erômeno
adolescente. (p. 57)
Tudo isso para que se projete a imagem
de que o “mais velho é o herói, o tipo superior pelo qual é preciso modelar-se,
a cuja altura procurará o outro, pouco a pouco, alçar-se.” (p. 57) Assim como
no mais moço surgia um sentimento de admiração o mais velho passava nutrir um
certo sentimento de paternidade:
no mais
velho desenvolvia-se um sentimento complementar: a teoria socrática é
ilustrada, à luz da tradição, por uma copiosa série de anedotas simbólicas;
respondendo a êsse apêlo, o mais velho sentia nascer em si uma vocação
pedagógica, fazia-se mestre de seu amado, apoiando-se sôbre esta nobre
necessidade de emulação. Descreve-se freqüentemente o Eros grego como
uma simples aspiração da alma, inflamada de desejo, para aquilo que lhe falta;
da parte do amante, o amor arcaico participa, entretanto, também, [...], por
esta vontade de enobrecimento, de dom de si, por êste matiz, para dizer tudo,
de paternidade espiritual. É este sentimento, tão minuciosamente analisado por
Platão, aclara-se à luz de uma análise freudiana: é, evidentemente o instinto
normal da procriação, o desejo apaixonado de perpetuar-se num ser semelhante a
si que, frustrado pela Inversão, se inclina e se manifesta sôbre êste plano pedagógico.
A educação do mais velho aparece como um substitutivo, um Ersotz esdrúxulo
do parto: "O objeto do amor (do amor pederástico) é procriar e dar a luz
dentro do Belo. (p. 57-58)
Esse processo, estranho para nós, era
comum na Grécia antiga como nos relata Morrou em um comentário cheio de
preconceitos: “Se me pus a desdobrar ao leitor uma análise tão paciente destas
monstruosas aberrações, deve-se isto ao fato de tal ter sido, para um grego,
modo normal, a técnica-padrão de tôda educação” [...] (p. 58)
Mas e a família, tinha alguma
participação?
A família
não podia constituir o plano da educação: a mulher, apagada, só é julgada competente
para a criação do bebê; a partir dos sete anos a criança lhe é retirada.
Quanto ao pai (não devemos esquecê-Io: estamos na origem de um meio
aristocrático), é monopolizado pela vida pública: êle é cidadão, homem
político, antes de ser chefe de família. Releiamos, a propósito disto, o
curioso testemunho que oferece Platão no início do Laques: mostra-nos
êle dois pais de família vindo consultar Sócrates a respeito da educação de
seus filhos; a dêles fôra lamentàvelmente negligenciada: "Censuramos nossos
pais, que nos deixaram sem freio em nossa juventude, por estarem ocupados com
os místeres dos outros." Trata-se do grande Aristides e de Tucídides, o
filho de Melésias, que foi o líder aristocrático oposto a Péricles e a quem o
povo de Atenas fulminou com o ostracismo em 443. Tampouco podemos admirar-nos
de que o mesmo Platão declare, alhures, com ênfase: a ligação pederástica
estabelece, no par de amantes, "uma comunhão muito mais estreita"
[...] do que a que une os pais aos filhos. (p. 58)
E a escola?
A
educação não era tampouco assegurada pela escola: na época arcaica, esta não
existia; e, depois de criada, permaneceu um pouco desprezada, desqualificada,
porque o mestre era pago pelo seu serviço, restringida a um papel técnico de
instrução, não de educação. (p. 58-9)
A educação nobre no final do século VI
Êste
traço é tanto mais acentuado quanto a educação grega clássica conserva alguma
coisa da herança da aristocracia arcaica. Ela havia sido elaborada,
originariamente, em função das necessidades de um meio rico, vivendo
nobremente, livre de qualquer preocupação de equipar tecnicamente a juventude
com vistas a um ofício, a um ganha-pão. Além do que, a educação era, precipuamente,
de ordem moral: formação do caráter, da personalidade, cumprindo-se no quadro
da vida elegante, esportiva e mundana ao mesmo tempo, sobe a direção de um mais
velho, dentro de uma amizade viril. (p. 59-60)
Suas sobrevivências: relações entre mestre
e aluno
Podemos
verificar que nessa forma de educação é o mestre que escolhe o se pupilo e que
aquele mestre que “vende” o seu saber para quem o quiser é desprezado
Durante muito tempo, a inexistência de instituições
propriamente educativas fêz com que um só tipo de educação aprofundada pudesse
existir: o que assim ligava o
discípulo ao mestre que o distinguira chamando-o a si, que o escolhera.
Salientemos o sentido em que se exercia a vocação: é um apêlo dirigido pelo
mestre, do alto, àquele a quem êle julga digno disto. Por muito tempo, a
opinião pública antiga desprezará o professor que faz comércio, oferecendo seu
saber ao primeiro comprador: a comunicação da ciência deve ser reservada a
quem a merece. Havia nisso um senso profundo da eminente dignidade da cultura,
de seu necessário esoterismo: senso que hoje perdemos no Ocidente, embora
subsista nas sabedorias orientais, a começar pela do Islã, onde se conserva bem
viva a idéia platônica da superioridade do ensino oral sôbre o escrito, que é
impessoal. (p 61)
Outra
característica que nos chama a atenção é a que está expressa nas últimas frases
da citação anterior “a educação a quem a merece”, concebia-se que apenas os
nobres cidadãos mereciam educação.
E os filósofos?
Entre os
filósofos, bastaria evocar a lembrança de Sócrates, que atraía e retinha a fina
flor da juventude dourada de Atenas, pelo "visco" da paixão amorosa,
apresentando-se como perito em coisas do eros. Mas seu exemplo não aparece
isolado: Platão foi amante e, ao que consta, não apenas "platônico"
- de Aléxis ou de Díon; a sucessão dos escolarcas de sua Academia fêz-se,
durante três gerações, de amante para amado, porque Xenócrates foi amante de
Pólemon, e Pólemon o foi de Crates, como Crântor o foi de Arcesilau. E isto não
era exclusividade dos platônicos: Aristóteles foi amante de seu aluno Hérmias,
tirano de Atárnea, ao qual imortalizaria com um hino célebre -, nem únicamente
dos filósofos, porque relações análogas uniam os poetas, os artistas e os
sábios: Euripedes foi amante de Agaton o trágico, Fidias o foi de seu aluno
Agorácrito de Paros, o médico Teomedonte do astrônomo Eudoxo de Cnidos. (p.
61-62)
Então, como
podemos verificar, os filósofos eram pederastas. Os educadores que não eram
pederastas eram os sofistas.
Safo educadora
A educação
feminina também tinha o seu espaço.
Permitem-nos
êles entrever que, em Lesbos, ali pelos fins do sétimo século, as jovens podiam
receber um complemento de educação, entre o tempo da infância, passado em
casa sob a autoridade da mãe, e o do casamento. Essa educação superior
cumpria-se numa vida comunitária no seio de uma escola - a "morada das
discípulas das Musas" -, que se apresenta, juridicamente, sob a forma (que
será também, a partir de Pitágoras, a das escolas filosóficas) de uma Confraria
religiosa [...] dedicada às deusas da cultura. Ali, sob a direção de uma
mestra, cujo tipo Safo gravou no retrato que pinta de si mesma, sua jovem
personalidade configura-se num ideal do belo, aspirando à Sabedoria.
Tecnicamente, essa escola equivale a um "Conservatório de Música e
Declamação": pratica-se aí a dança coletiva, herdada da tradição minóica,
a música instrumental, e, sobretudo, a nobre lira, assim como o canto. A vida
comunitária é ritmada por tôda uma série de festas, cerimônias religiosas ou
banquetes. (p. 62-63)
Nessas escolas também eram palco de
relações amorosas entre mestra e discípulas
Enfim - e
aqui reencontramos o tema do presente capitulo -, também esta educação não
deixa de ter sua chama passional, pois entre mestra e discípula aperta-se o
elo ardente de Eros. Na verdade, é isto o que sabemos melhor a seu respeito,
pois, em última análise, só percebemos tôda esta pedagogia através do eco das
paixões experimentadas pelo coração de Safo, através dos gritos lancinantes que
a dor lhe arranca quando ela é apartada, pelo casamento ou pela traição, de
alguma de suas alunas e amadas. O amor sáfico não recebeu ainda, aqui, a
transposição metafisica que receberá, em Platão, a pederastia, convertida numa
aspiração da alma à Idéia: é ainda, apenas, uma paixão humana, ardente e
frenética: "Eros de nôvo, êste quebra-ossos, atormenta-me, Eros amargo e
doce, a invencível criatura, oh minha Átis! E tu, enfastiada de mim, foges para
Andrômeda." (p. 63-64)
E pelo que podemos verificar havia
escolas para moças concorrendo entre si
Só
conhecemos a tíase lesbiano por um acaso aquêle mesmo que dotou de gênio a alma
ardente de Safo: mas seu exemplo não parece isolado: sabemos que ela teve, em
sua época, algumas concorrentes, rivais no plano profissional: Máximo de Tiro
conservou-nos o nome de duas destas ‘diretoras de pensionatos para senhoritas’,
Andrômeda e Gorgona. O ensino feminino, por muito tempo ofuscado – ao menos em
nossa documentação – em virtude da predominância masculina na civilização
grega, só torna a aparecer novamente às claras muito mais tarde, pouco antes de
abrir-se a época helenística. (p. 64)
A pederastia era
o método educativo utilizado pelos nobres. O Educador, o erasto, escolhia um
jovem a quem se dedicava educar. Num primeiro momento não existem educadores
profissionais e quando este começam a aparecer há um descrédito para com eles,
exatamente por cobrarem. E, por último, a educação das moças se dá em
instituições específicas (confrarias), o texto nos leva a supor que havia
alguma forma de pagamento para a manutenção desta, mas não há registro de como
e quanto isso representava.
MORROU, Henri-Irénée. Da
pederastia como educação. In: ___. História
da educação na antiguidade. São Paulo: EPU, 1975. p. 51-65.