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domingo, 28 de julho de 2013

O ESTADO ROMANO E A EDUCAÇÃO


http://pt.wikipedia.org/wiki/Imp%C3%A9rio_Romano

Durante a República, Roma não teve, para falar com propriedade, política escolar; um grego como Polibio, habituado a ver as cidades helenísticas interessar-se de perto pelos problemas da educação, espanta-se com esta "negligência": o Estado romano abandona a educação à iníciativa e à atividade privadas. Eis aí uma das facetas que mostram o arcaísmo das instituições romanas, confrontadas com as do mundo helenístico. Sob o Império, Roma de certo modo livra-se do atraso e tende a conformar-se às normas em vigor no mundo grego. (p. 457)

            A política escolar.

Com respeito às escolas, o Império romano foi levado a praticar urna política ativa de intervenção e de patronato. À diferença daquilo que nos mostraram as cidades helenísticas, jamais houve, em Roma, magistratura especial encarregada da supervisão ou da inspeção dos estabelecimentos de ensino. Pelo contrário, como as cidades gregas, o Estado romano concede ao corpo docente favores de ordem fiscal e assume, ele próprio, pelo menos em certos casos, a responsabilidade de sua remuneração. A Vespasiano cabe a honra de haver iniciado esta dupla política. (p. 460)
           
Isenções tributárias.

As medidas tomadas por César ou por Augusto em benefício dos professôres referiam-se apenas aos estrangéiros e atestam, por conseguinte, antes de tudo, o esfôrço que Roma envidou para atrair a si os mestres gregos. Com Vespasiano aparece uma verdadeira política de imunidade fiscal: todos os professôres do ensino secundário e superior beneficiam-se doravante das isenções dos encargos municipais (munera) que Augusto havia concedido até então unicamente aos médicos. Trata-se, primeiramente, só da "hospitalidade", do alojamento de tropas em quartel, mas os sucessivos imperadores que, a partir de Adriano, concederam e confirmaram êstes privilégios, estenderam-nos progressivamente, a partir de Antonino e de Cômodo, a outros encargos: tutela, em seguida ginasiarquia, agoranomia, sacerdócio, etc. A mesma política é reafirmada, com alguns matizes, pelos Severos, Gordiano, Diocleciano, Constantino, Valentiniano, Teodósio II, e definitivamente ratificada pelo Código Justiniano. É verdade que, entrementes, esta política muito havia perdido de seu alcance, porquanto as imunidades assim concedidas aos professores, estes as compartiam, desde Caracala, com seus estudantes, e, desde Constantino, com um grande número de ofícios, considerados como igualmente úteis ao bem público. (p. 461)

Assim vemos os mesmos imperadores empenharem-se em limitar o número dos beneficiários destas isenções: excluem delas os simples mestres primários, os professores do ensino técnico, os professores de direito fora de Roma e, às vezes, até os filósofos. Preocupado sem dúvida, com o número crescente de pessoas ilustres que tratavam de escapar aos munem fazendo-se reconhecer, talvez em caráter honorário, o título de professor, Antonino fixou uma cifra máxima, que as municipalidades aliás tinham ainda liberdade de reduzir; texto interessante, que nos dá uma idéia do que podia ser o efetivo do pessoal ensinante na Grécia da Ásia no século II (a decisão. de Antonino, estendida depois a todo o Império, foi dirigida ao koinon da Ásia): o imperador distingue três categorias de importância crescente, que o jurisconsulto Modestino identifica com as metrópoles de provincias, as sedes de uma alçada judiciária e enfim as cidades ordinárias; segundo a categoria, admitem-se aí dez, sete ou cinco médicos, cinco, quatro ou três retóricos, e o mesmo número de gramáticos. (p. 462)

Cátedras de estudo.

A política assim inaugurada em Roma por Vespasiano foi retomada em Atenas por Marco Aurélio, que dotou semelhantemente, a expensas do tesouro imperial, uma cadeira de retórica e quatro cadeiras de filosofia, à razão de uma para cada uma das quatro grandes seitas (platônica, aristotélica, epicurista e estóica). A escolha dos primeiros titulares foi confiada a Herodes Ático, um dos antigos preceptores do imperador, e a dos seus sucessores a uma comissão de notáveis. Os filósofos recebiam, anualmente, sessenta mil sestércios, o retórico quarenta mil: esta cátedra, por conseguinte, era muito menos cotada que a de Roma, e Filagros, por exemplo, trocá-la-á por esta; no Baixo Império, ao contrário, a glória da escola de Atenas resplandecerá e veremos pelo contrário Proherésio transferir-se de Roma para Atenas: é este um símbolo bastante claro da recessão do grego no Ocidente. (p. 463)

            O imperador como evergeta.

Do mesmo modo, se o imperador dota cadeiras professorais, é ainda como evérgeta, em sua boa cidade de Roma, nesta Atenas que é, para todo letrado, uma segunda pátria. Suetônio relaciona a fundação das primeiras cadeiras estatais ao conjunto das iniciativas que mostram em Vespasiano um mecenas, um esclarecido protetor das letras e das artes. Do mesmo modo, Adriano aparece-nos menos como um soberano preocupado com a reforma do ensino que como um mecenas, outorgando pensões a retóricas célebres, favores e facilidades legais à confraria epicuréia de Atenas.
Como aconteceu com as instituições alimentares, estas fundações de cátedras encontraram imitadores entre os evérgetas privados. Plínio o Jovem, entre muitas outras iniciativas em benefício de sua cara pátria de Como, toma a de agrupar os pais cujos filhos até então deviam ir a Milão para fazer seus estudos (superiores e talvez mesmo secundários), a fim de que mandassem vir, a preços módicos, os mestres necessários. Ele mesmo arcará com o têrço da despesa: poderia tê-Ia assumido inteiramente, mas do outro modo os pais sentir-se-ão mais diretamente interessados no sucesso do empreendimento e ele evitará parecer agir com o fim de assegurar-se o reconhecimento dos seus concidadãos, "o que acontece, no-lo diz, nos numerosos lugares em que professores são assim contratados em nome da cidade". (p. 465)

Escolas municipais.

Há mais, entretanto: faz-se mister analisar os têrmos de que Plínio se serve: multis in locis . . . preceptores publice conducuntur. Havia, pois, em seu tempo, "muitas cidades que mantinham escolas públicas": muitos outros testemunhos confirmam a existência de gramáticos ou de retóricos titulares de tais cátedras municipais - embora nem sempre seja possível determinar o modo de financiamento destas cátedras: orçamento ordinário ou fundação privada. (p. 466)

Esta evolução parece haver chegado ao seu têrmo no Império cristão: no século IV encontramos por tôda parte algumas dessas escolas, schola publica ou municipalis, [...] mantidas, mais ou menos regularmente aliás, pelo orçamento municipal, salario publico. Elas nos são referidas, na Gália, por Ausônio, em Lyon, Besançon e, parece, Toulouse; por Santo Agostinho em Cartago e Milão; no Oriente, por Libânio, em Constantinopla, Nicomédia e Nicéia, assim como em Antioquia. Pode-se admitir que em tal época toda cidade, por pouco importante que seja, tomou a seu cargo a manutenção de um ou vários professores. (p. 466-467)

            Persistência do ensino privado.

Mas nem todo o ensino se tornou público: haverá sempre, de fato e de direito, um ensino privado, mesmo nas cidades como Roma, Atenas ou Constantinopla, onde existem cadeiras oficiais: ensino baseado na livre concorrência - concorrência, aliás, muito encarniçada que contribui para manter os professores, mesmo célebres, em condição econômica bastante precária. Possuímos curiosos testemunhos sobre os pitorescos métodos a que recorriam, em Atenas, os professores do século IV para recrutarem audientes: mostram-nos os discípulos de um mestre trancafiarem num quarto os "calouros" (p. 467)

            Processo de nomeação.

Quanto aos professores do ensino público, são nomeados, e portanto (Gordiano tirará esta conseqüência) exoneráveis, pelo conselho municipal, o ordo da cidade. A lei, sem dúvida desde Marco Aurélio, prescrevia um largo apêlo à concorrência, uma espécie de concurso; sob a forma definitiva que Juliano, o Apóstata, lhe deu em 362, os candidatos devem submeter uma mostra de seus talentos (probatio) ao julgamento de um público de notáveis, optimorum conspirante consensu. (p. 467-468)

Uma cátedra tão cobiçada como a de Atenas dava margem a viva competição: o provimento não se efetuava sem intrigas, cabalas, agitações, em que, evidentemente, os estudantes desempenhavam papel de primeiro plano; outras sentiam maior dificuldade em encontrar candidatos: vemos a municipalidade de Milão escrever para Roma, ao prefeito da cidade, o orador Símaco, pedindo-Ihe um professor de retórica: Santo Agostinho, então professor privado, apresentou-se a ele, submeteu-lhe um discurso de sua lavra, e fêz-se assim propor aos milaneses. (p. 468)

Intervenção do poder imperial.

Talvez, desde o tempo de Antonino, os imperadores tenham intervindo com o objetivo de encorajar as municipalidades a abrirem escolas, para fixar a taxa dos vencimentos do magistério, mas sobre isto temos apenas o testemunho, sempre suspeito de anacronismo, dos autores da Historia Augusta, e talvez se possa aqui presumir que hajam antedatado um costume corrente em seu tempo. (p. 468)

As nomeações já não são mais deixadas à iniciativa únicamente das municipalidades: em Atenas, vemos com muita freqüência o procônsul, representando o imperador intervir para decidir sobre uma eleição contestada, recompor o corpo docente, sugerir uma nomeação. O próprio soberano acompanha de bem perto estas questões de pessoal para tomar iniciativas: assim, em 297 Constâncio Cloro envia a Autun, para restaurar-lhe as escolas, um alto funcionário de sua corte de Trêves, o sofista Proherésio, antes de permitir-lhe voltar, coberto de honras, a Atenas. Constâncio II designa, pessoalmente, para serem escolhidos pelo Senado da Nova Roma, vários professores de eloqüência ou de filosofia, entre os quais o retórico Libânio e o filósofo Temístio; Libânio só trocará Constantinopla por Antioquia com sua permissão. (p. 469)

Esta intervenção acaba, com Juliano, por tornar-se a regra geral: ele decide que ninguém poderá ensinar senão depois de haver sido aprovado por um decreto baixado pelo conselho municipal e devidamente ratificado pela autoridade do imperador: este assumia assim o direito de supervisionar o ensino em todo o Império. (p. 469)

No interior da esfera da competência municipal, o imperador intervém ainda para avocar as cidades aos seus deveres: uma lei de Graciano, em 376, provàvelmente inspirada por Ausônio, prescreve a todas as grandes cidades a obrigação de escolher os melhores retóricos e gramáticos para a instrução de sua juventude; o imperador não quer tirar-lhes o direito de eleger seus "nobres professores", mas estabelece o montante dos seus vencimentos; serão concedidas, sobre o orçamento municipal, vinte e quatro anonas aos retores e doze aos gramáticos, latinos ou gregos; em Treves, a capital, são estas cifras elevadas a trinta e a vinte (para o gramático latino; seu confrade grego, se se puder encontrar um capaz de preencher-lhe as funções, contentar-se-á com doze anonas). (p. 469-470)

A Universidade de Constantinopla.

Esta política de intervenção ativa encontra seu têrmo de maturação na constituição de 27 de fevereiro de 425, pela qual Teodósio II organiza em Constantinopla uma Universidade estatal, que, na capital, verdadeiramente monopoliza o ensino superior (só o preceptorado privado permanece livre). Seus professores são proibidos de dar aulas particulares; darão seus cursos nas salas dispostas em êxedra, na face norte da praça do Capitólio. O corpo docente compreende: para o ensino das letras latinas, três retóricos e dez gramáticos, para as letras gregas, cinco retóricos e dez gramáticos; enfim, para os altos estudos, um professor de filosofia e dois de direito.
Os fragmentos desta constituição inseridos nos Códigos não nos informam sobre a situação material dêste pessoal; que se tenha querido homenageá-Io, atesta-o a decisão tomada em 15 de março do mesmo ano de 425, conferindo honoràriamente o título de comes primi ordinis aos professores que tivessem completado vinte anos de serviços durante os quais houvessem satisfeito plenamente. (p. 470)

Honras conferidas aos professores.

Esse gesto não era nem novo, nem insólito: os imperadores foram pródigos em conferir horas, muitas vezes elevadas, aos membros do corpo docente. Nisto ainda cabe aos flávios o mérito da iniciativa: Domiciano conferiu pela primeira vez os ornamentos consulares a um retórico na pessoa de Quintiliano. (p. 470-471)

É verdade que o fêz sobretudo para recompensá-Io por haver educado seus sobrinhos e filhos adotivos. O preceptorado imperial, mais que os préstimos universitários explica também o consulado com que foram contemplados no século II Frontão e Herodes Atico, e no IV as honras conferidas a dois retóricos toulousanos, preceptores de um filho ou de dois sobrinhos de Constantino; sem mencionar o caso bem conhecido de Ausônio: chamado de Bordéus para Trêves por Valentiniano, recebeu de seu aluno, o jovem imperador Graciano, as mais altas distinções: o consulado, a prefeitura do pretório das Gálias, além das que obteve para seu pai, seu filho e seu genro: houve um momento, nos anos 378-380, em que o Ocidente inteiro era administrado pela familia do retor aquitano. Mas a fortuna política de Temístio repousa imicamente na reputação do seu ensino público: foi nomeado por Constâncio II senador, depois arconte-procônsul de Constantinopla, muito antes de Valente ter pensado em confiar-lhe, como o fará também, mais tarde, Teodósio, a educação de um príncipe imperial. (471)

            As escolas e o recrutamento dos funcionários

Este zelo, porém, não é apenas desinteressado. O Estado do Baixo Império repousa sobre dupla base; ao lado do exército, há a administração civil, cujo desenvolvimento tentacular multiplicou os serviços e os escritórios. Depois de Diocleciano, o Estado romano tornou-se uma monarquia burocrática: exuma o tipo de govêrno que havia sido o das velhas monarquias orientais, um govêrno de escribas. (p. 474)

Não eram vãs promessas ou ilusórias esperanças: a praxe do govêrno imperial mostra-nos que, salvo exceções, os postos elevados da administração são normalmente reservados aos antigos alunos do ensino superior. (p. 475)

O ensino de estenografia.

Já vemos o imperador Tito capaz de rivalizar em rapidez com seus próprios secretários. Em 155, um papiro de Oxirrinco mostra-nos um jovem escravo confiado por seu mestre a um professor de estenografia, [...]: este é contratado por um preço de empreitada (pagável em três prestações escalonadas) para ensinar-lhe sua arte em dois anos. (p. 477)

Uma técnica tão requisitada era objeto de grande interesse por parte dos pais preocupados em dar a seus filhos um ofício lucrativo. Mesmo num recanto obscuro do Alto Egito, basta um mestre abrir uma escola na qual promete ensinar não apenas as letras, mas também a estenografia, para aparecer-lhe clientela. Libânio, sensível a tôda concorrência, sugere mesmo que os pais acabavam por dar mais importância a esta arte que ao estudo das letras clássicas. (p. 478)

Por este último aspecto, a educação do Baixo Império assume afinal sua fisionomia característica: laborava eu em erro ao sugerir, no limiar desta história, que a educação antiga evoluiria no sentido de uma cultura de escribas? (p. 478)

MARROU, Henri-Irinée. O Estado romano e a educação. In: ___. História da educação na antigüidade. São Paulo: EPU, 1975. p. 457-478.

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