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domingo, 25 de agosto de 2013

A EDUCAÇÃO NA ALTA IDADE MÉDIA


http://ebvpancora5b.blogspot.com.br/2010_05_01_archive.html

O autor inicia o presente capítulo apresentando de forma sucinta as condições da sociedade do século VI:

No início do século VI verificam-se fenômenos políticos significati­vos. De um lado, alguns reinos romano-bárbaros já se implantavam fir­memente em territórios do Império do Ocidente, onde a única autori­dade política autenticamente romana é a Igreja e especialmente o papa­do; de outro lado, o Império do Oriente conserva ainda a sua unidade e a sua força, o que lhe permitirá tentar a reconquista do Ocidente. Estes três centros de poder, tão diferentes entre si, se enfrentarão numa complexa luta ideológica e militar. (p. 111)

O fim do Império Romano colocou em xeque diversas instituições e seguimento sociais dentre os quais os professores, em alguns houveram medidas com a finalidade de garantir estas instituições e seguimentos: “Na Itália, entre os ostrogodos, Teodorico procurou. garantir as con­tribuições anonárias aos profissionais das artes honestae, entre os quais os mestres de gramática e de retórica, reservando, porém, a cultura das artes liberais aos romanos [...]” (p. 111).

Porém nada será como antes. A cultura clássica perde seu espaço e os profissionais ligados a ela por sua vez ficam em dificuldades, com algumas exceções

O repúdio e o esquecimento da cultura clássica já são um fato consumado. As escolas de artes liberais tiveram, pelo menos na Itália, os seus últimos esplendores sob Teodorico, que interviera em seu favor; em seguida, após a destruição da guerra greco-gótica, Justiniano, solici­tado pelo papa Vigílio, renovou as providências do rei bárbaro. Na sua Pragmática Sanção, de 554, com que sancionava o renovado (e caduco) domínio imperial na Itália, reconfirmava "as contribuições anonárias que, nos tempos de Teodorico, costu­mavam ser pagas aos gramáticos ou aos retores, como também aos médicos e aos jurisperitos que tivessem continuado a exercer sua profissão, para que em nosso Estado floresçam jovens instruídos nos estudos liberais" (Nov., App., VII, 22). (p. 113)

Nesses momentos as organizações ligadas a Igreja se constituíram o espaço formativo dos jovens, mas nesse espaço também acaba por ser, muitas vezes o fim para o qual a formação levará o indivíduo

Mas quantos teriam sido os gramáticos e os retores a exercer a profissão e quantos jovens teriam se dedicado aos estudos liberais? Cas­siodoro (ou o próprio Teodorico, pela pena de Cassiodoro) já deplorara que tantos jovens, terminados os estudos das letras, acabassem num mos­teiro ou voltassem às suas propriedades:
"estudam para depois desaprender; instruem-se para depois se descuidarem" (Variae, VIII, 31). (p. 113)

Aos poucos os últimos resquícios da cultura clássica irão findar “E esta cultura irá findando lentamente até para os próprios romanos: o último ludimagister se encontrará na Aquitânia, no século VII.” [...] (p. 114)

Na medida em que a Igreja vai assumindo o papel educativo ela começa a preparar o seu pessoal para tal função e para tanto foi buscar inspiração no povo hebreu:

Já em 418, o papa Zózimo instituira as primeiras escolas religiosas, para que, dizia, os sacerdotes aprendessem antes de ensinar. De fato, a tarefa dos sacerdotes, já claramente distinta da dos leigos (clero significa parte eleita, separada), é de ensinar: uma função que, diversamente dos antigos levitas do povo hebraico, não é conquistada exercendo primeiramente a "força das armas”. O "dizer" e o "fazer" aqui são nitidamente distintos: isto é típico da sociedade cristã. Contudo, o modelo organizacional destas escolas para a formação dos sacerdotes-mestres é exatamente a escola hebraica. O modelo dos hebreus está conscientemente presente, por exemplo, no Ambrosiaster (como foi chamado por Erasmo o desconhecido autor do Comentário às cartas de Paulo anteriormente atribuído a Santo Ambrósio), onde se fala dos
"mestres que costumavam instruir as crianças no alfabeto e nas letras, como é costume dos hebreus, cujas tradições passaram para nós e que, em seguida, por nossa negligência, caíram em desuso" (f. L. XVII, 387).
(p. 114-115)

E também em outro lugar lembra esta derivação da escola cristã da escola hebraica: "Chama doutores àqueles que na igreja ensinavam às crianças as letras e as leituras a serem decoradas, segundo o costume da sina­goga, já que a tradição deles passou para nós" (II, 141). (p. 115)

O exemplo da sinagoga passou, portanto, à Igreja, como também da sinagoga passou para a Igreja o uso de decorar as paredes com afrescos ilustrando episódios da vida de Moisés e de Cristo, para fins de acul­turação ou de edificação. Talvez seja excessivo atribuir à escola da si­nagoga o mérito de ter realizado pela primeira vez na história um sistema de instrução pública e obrigatória (tal foi também, de certo modo, o ginásio para os gregos da diáspora), todavia o cristianismo, fundado na tradição hebraica, marca uma nítida separação da antiga tra­dição que excluía as classes populares da instrução. A ordem "euntes docete omnes gentes" caracteriza uma nova atitude mental: todos devem ser, se não cultos, pelo menos aculturados, através de um processo que hoje chamaríamos institucionalizado, e a cada um deve ser aberto o acesso àquela corporação de mestres que é o clero. A nova tradição cristã ignorará durante séculos, pelo menos em princípio, qualquer ostra­cismo aos "meduti", aos "lobetéres", aos "rbetores latini", que expressa­va a discriminação educativa de outras sociedades.
(p. 115)

E a Igreja passa a constituir espaços educativos que venham a suprir a ausência das antigas escolas romanas, começa pela escola episcopal:

Por exemplo, na Espanha, o Concílio de Toledo, de 527, decide:
"As crianças destinadas por vontade dos pais, desde os primeiros anos da infância, à missão do sacerdócio, logo que sejam tonsura­das ou recebidas para exercer os ministérios eclesiásticos, devem ser instruídas pelo preposto na casa da igreja, à presença do bispo" (VIII e 785). (p. 116)

Em seguida a escola paroquial:

Dois anos mais tarde, o Concílio de Vaison, na França, estabelece
"Todos os padres constituídos para presidir as paróquias, seguindo o hábito que é oportunamente observado na Itália, acolham suas próprias casas leitores mais jovens e procurem, alimentando-os espiritualmente como bons pais, ensinar-lhes os salmos, acostumá­-los às divinas leituras e instruí-Ios na lei do Senhor, de modo que possam providenciar bons sucessores para si mesmos e, assim, re­ceber de Deus os prêmios eternos" (Cone. Gal/., p. 78).(p. 116)

E nos mosteiros a educação continua se dar onde "por três horas as criancinhas, na sua década, sejam instruídas em suas tabuinhas por um monge letrado; também os adultos analfa­betos, até os cinqüenta anos, aprendam as letras” (Masai, L, p. 247); (p. 120).

Houveram algumas discussões a respeito dos conteúdos, pagãos (ligados a civilização grego-romana) e religiosos (sobretudo as Escrituras), mas essa discussão logo tem fim e começa-se a constituir o modelo de escola que se configurará como o mais importante dessa época:

Meio século mais tarde, porém, Cassiodoro, que, como sabemos, exerceu na corte do rei ostrogodo Teodorico aquele aspecto cultural do poder (o "dizer" que permanecera confiado aos romanos, e que em 540 fundará em Vivarium, na Calábria, um mosteiro que prefigura aquelas escolas cenobiais que se tornaram os grandes centros de cultura da Idade Média, tomou uma posição mais equilibrada, tentando conciliar classicismo e cristianismo. Ele convidava os magistri saecularium lilte­rarum, que ainda subsistiam, a reconhecer que nas Sagradas Escrituras era possível encontrar todas as figuras retóricas que se ensinavam em suas escolas [...]. (p. 123)

Mas o público dessas escolas não é o mesmo de antes

Se as paróquias e os cenóbios são a nova escola, e se os presbyteri e os priores fratres são os novos ludimagistri, seus discípulos, porém, não são mais os grandes filhos dos grandes centuriões, como ironizara Horácio, mas as crianças de origem humilde e, freqüentemente, escra­vas de ultramar resgatadas pelos conventos. A Vila Amandi lembra que o santo:
"resgatava crianças de países ultramarinos e as fazia adequadamen­te instruir nas letras" (MGH, SRM, V p. 428). (p. 128)

Porém o “pessoal docente é escasso e carece de formação:

Como se vê, a utilidade do pároco e a segurança da igreja exigiam que não faltassem sacerdotes. Estes, como nos séculos precedentes, pa­rece que não eram muito instruídos, já que o concílio de 633 tem de recomendar uma vez mais que "os sacerdotes tenham conhecimento das escrituras e dos câno­nes" (c. 25), e que no ato da ordenação recebam o livro com o ofício, "para que, bem instruídos, saibam dirigir as igrejas a eles con­fiadas" (c. 26).
Devido, portanto, à ignorância e, talvez, à escassez dos sacer­dotes, procurava-se instruí-los criando nas paróquias verdadeiras escolas e recrutando libertos, para que fossem ao mesmo tempo clérigos e servos. Um pouco como acontecia e acontecerá na relação de aprendi­zagem artesanal, em que cada mestre de ofício forma o seu jovem aprendiz. Talvez, além do espírito de filantropia e proselitismo, tam­bém este fosse o estímulo a induzir os mosteiros da Germânia a resga­tar meninos escravos, para educá-los nos mosteiros. (p. 129)

Igreja e Estado tem dúvidas sobre com quem o dever de instruir o povo deve ficar

Na Itália, alguns anos mais tarde, em 825, Lotário, porém, com o Capitulare olonense, libera completamente a Igreja da função de instruir os leigos, instituindo aquela que poderíamos definir como uma escola pública de Estado, a ser organizada em sedes mais adequadas (in con­gruentissimis sedibus); elas são indicadas nas cidades de Turim, Pavia, Cremona, Florença, Fermo, Vicenza, Cividale e Ivrea, onde, porém, a iniciativa ficou aos cuidados do bispo. O exemplo da Itália é logo se­guido na França, onde, no Concílio de Paris, em 829, são os próprios bispos que solicitam a Lotário que o clero não seja obrigado a providenciar a instrução dos leigos, mas que
"seguindo o costume do pai, pelo menos nas três sedes mais im­portantes do império fossem criadas escolas públicas por vossa iniciativa" (Can., XII).
(p. 133)

Porém uma das partes resolve sua “dúvida”: “Logo, porém, a Igreja modificará radicalmente essa política, avo­cando para si qualquer iniciativa em matéria de educação.” (p. 133) A Igreja assume de vez esse papel e mais adiante irá fazer algumas distinções entre a educação dos leigos e a educação dos futuros sacerdotes

Mas no momento, se o papado romano volta, após os tempos de Gregório Magno, a ocupar-se destes problemas, o faz visando a forma­ção dos clérigos e muito pouco a dos leigos. Todavia, exatamente sob o papado de Eugênio II (824-827), inaugura-se a legislação pontifícia sobre as escolas episcopais, que depois entrará nos Decretalia, isto é, no corpus iuris da Igreja, e vigorará até a XXIII Sessão do Concílio de Trento (1545-64), na qual serão instituídos os seminários para a formação dos religiosos. O Concílio romano de 826 sanciona:
"Chegam-nos de alguns lugares notícias de que não se encontram mestres e que ninguém se interessa pelo estudo das letras. Por­tanto, em todos os bispados, com suas respectivas paróquias e em outros lugares em que se fizer necessário, tomem-se todas as providências para nomear mestres e doutores que ensinem as letras, as artes liberais e os sagrados dogmas, pois nestes especialmente é que se manifestam os mandamentos de Deus" (Can. IV).
(p. 133)

MANACORDA, Macio Alighiero. A educação na Alta Idade Média. In: ______. História da educação: da antiguidade aos nossos dias. 5. ed. São Paulo: Cortez, 1996. p. 111-139.

domingo, 18 de agosto de 2013

A EDUCAÇÃO NA GRÉCIA


http://classicalstudiorum.blogspot.com.br/2012/03/o-que-e-educacao-classica.html

O autor começa tratando do que ele chama de “as duas tradições arcaicas”, isto é, a educação homérica e a educação hisiódica. Para Manacorda o período retratado por Homero e o período posterior correspondem a uma só época, o Período Arcaico; diferenciando-se de Marrou que os distingue como Período Homérico e Período Arcaico.

Segundo o texto há semelhanças entre a educação arcaica e a egípcia. A educação em Homero é realizada por um nobre que por alguma circunstância da vida foi levado a refugiar-se em terras que não as suas e que foi “convidado” por algum nobre do local a realizar a educação do filho deste nobre. Assim ele apresenta o educador homérico: “Estes educadores arcaicos têm em comum algo de estranho: são pessoas que mataram ou tentaram matar e, por isso, tiveram que fugir de suas terras e procurar hospitalidade em outro lugar.” (p. 42) Em outro trecho o autor comenta esse fato: “De modo paradoxal, exatamente esses feitos pouco promissores lhes abre caminho para a missão de educador.” (p. 43-4)

A educação hesiódica segue caminhos parecidos, o educador em questão é um nobre que educa seu pupilo. Manacorda não faz nenhuma referência a prática da pederastia.

Em relação ao Período Clássico o autor faz referência aos professores de ginástica, música e “alfabetizadores”; também aos pedagogos e magistrados responsáveis pela educação naquelas cidades-Estado que, posteriormente, irão assumir a educação como tarefa pública, sem apresentar nenhuma novidade em relação ao que Marrou apresenta.

A partir do século VI a.C. surge a “escola das letras” onde se ensina a ler e escrever.
   
Os docentes: grammatistés, grammaticós, rhétor

Neste texto pode-se verificar com maior nitidez as diferenças entre o “mestre-escola” e o pedagogo:

Lydo já se queixara porque o menino, em vez de chamá-lo peda­gogo, o chamou pelo nome, como se fosse um escravo comum. De fato, escravos estrangeiros, prisioneiros de guerra, eram sempre os pedagogos em casa, como testemunham seus nomes (Lydo, Davo, Siro, Trácio etc.); já os mestres de escola são gregos ou pessoas livres, que exercem um ofício como outros. Se, no entanto, confrontarmos esta comparação entre a velha educação e a nova com a de Aristófanes, de dois séculos antes, poderemos usufruir das eternas saudades dos conservadores e também constatar o quanto mudou a escola. Aristófanes nem falava das letras e Menandro coloca em primeiro plano, ao lado da educação ginástica, a importância até de uma única sílaba. Aqui parece que toda educação física se realiza fora de casa, no ginásio, enquanto a educação literária, pelo menos a inicial, é desenvolvida particularmente, com o pedagogo em casa. O menino freqüentará a escola externa num segundo momento, e será a escola do grammatikós. (p. 61)

Como pode ser verificado no trecho anterior o “mestre–escola” é o responsável pela alfabetização, este divide espaço com educadores responsáveis pela ginástica e música. A novidade trazida por este autor que há níveis distinto em que o “mestre-escola”: “Desta cena dos Báquides de Menandro-Plauto resulta que a posição social do mestre certamente não era de grande prestígio, embora seja necessária uma distinção entre os diversos graus: o grammatistés, o grammatikós, o rhétor.” (p. 61)

Mas mesmo havendo níveis diferentes ainda o mestre tem pouco prestigio:

Em geral, o ofício de mestre era o ofício de quem caíra em desgraça (como no exemplo de Dionísio de Siracusa) e nisto parece perpetuar-se o destino de Fênix e Pátroclo. Mais exatamente: entre as téchnai, os ofícios ou profissões "artesanais", esta téchne intelectual em geral não era exercida por homens do démos, em cujas famílias o ofício passava de pai para filho, mas por homens de classes cultas que por desgraça tiveram que descer na escala social. O caso real de Dionísio de Siracusa, além do risco corrido por Platão, feito escravo quando voltava da Sicília, confirmam isso. Mas não faltam outros exemplos. (p. 61)

Ter sido um “mestre-escola” parece ser uma marca a ser carregada pela vida inteira:

Demóstenes (De Corona, 129 a 258) censurará repetida e maligna­mente a seu rival Ésquines aquilo que o próprio Ésquines testemunha com amarga veemência (Contra Ctesifonte), isto é, que o pai, em decorrência dos graves acontecimentos da Guerra do Peloponeso, foi obrigado a servir como mestre na casa de Élpia, tendo o filho como seu assistente. Do fragmento de uma comédia comprova-se também qual o destino dos prisioneiros de guerra, inclusive de gregos entre gregos (trata-se de prisioneiros atenienses): "Ou morreu ou ensina o bê-á-bá. Daqueles que combateram com Nícia, na Sicília, alguns morreram, outros foram feitos prisioneiros e ensinaram as letras aos filhos dos siracusanos" (Zenobius, IV, 17) (p. 61-2)

Ser assalariado era algo horrível para aquela sociedade, tanto que quando alguém ensinava gratuitamente um familiar seu era algo visto com naturalidade, agora quando se ensinava por dinheiro era vergonhoso.

O presente texto reafirma a condição precária do “mestre-escola”.

MANACORDA, Macio Alighiero. A educação na Grécia. In: ______. História da educação: da antiguidade aos nossos dias. 5. ed. São Paulo: Cortez, 1996. p. 41-72.

domingo, 11 de agosto de 2013

O SURGIMENTO DAS ESCOLAS CRISTÃS DE TIPO MEDIEVAL

Desde o século IV, vemos, todavia, aparecer um tipo de escola cristã, inteiramente orientada para a vida religiosa e que nada mais tem de antiga; esta escola, porém, de inspiração já totalmente medieval, permanece por longo tempo propriedade de um meio particular e pouco se irradia exteriormente. Trata-se da escola monástica. (p. 502)

A escola monástica no oriente.

Mas nada disso teve grande repercussão. Vê-se, claramente, que o apêlo de Crisostomo é de uma alma exaltada, inteiramente voltada para a perfeição e convencida de que todos são tão sensíveis quanto ele. Nada menos prático que isso que ele imagina: os rapazes permanecerão dez anos, vinte anos, caso necessário, no mosteiro para consolidar-se na virtude; mas qual se toma então sua carreira no século? Ele tem muito cuidado, sem dúvida, em esclarecer que não deseja que estas crianças fiquem sem instrução, mas nada indica que houvesse meios para que se lhas outorgasse no deserto. Se ele nos mostra, uma vez, um monge servindo de preceptor a um rapaz iniciado nos estudos profanos, este é, segundo ele mesmo diz, um caso absolutamente excepcional: é até pelo fato de não se poder generalizá-Io que ele propõe a solução de uma permanência no deserto. (p. 505)

Quanto a São Jerônimo, longe de pensar em generalizar o plano de educação imaginado para Paula (esta com efeito, parece haver correspondido muito mal às esperanças do seu mestre), não parece tampouco que ele mesmo o tenha aplicado de maneira sistemática: corno sabemos, dirigia ele a educação de certo número de jovens latinos que lhe haviam sido confiados no seu mosteiro de Belém, mas o ensino que lhes ministrava seguia os programas clássicos: a gramática, Virgilio, os poetas cômicos e líricos, os historiadores...
São Basílio, corno vimos, não manifestava grande entusiasmo em admitir no claustro crianças cuja vocação religiosa não fôsse certa; à medida que se avança, mais os meios monásticos mostram desconfiança contra esta intrusão, que só pode comprometer a paz e o recolhimento, e afinal, em 451, o Concílio de Calcedônia interditou formalmente a educação, nos conventos, de crianças destinadas a voltar ao século, [...]. Essa interdição será sempre mantida: a escola monástica, em país grego, é, se podemos dizê-lo, para uso interno. (p. 506)

A escola monástica no ocidente.

Nada disso no Ocidente: a lectio divina, a leitura dos Livros santos e antes de tudo do ofício, parece inseparável do pleno exercício da vida monástica. Este caráter letrado é bem manifesto nas origens: Santo Agostinho, que introduziu o monaquismo na África, dera à sua primeira comunidade, que, ainda leiga, ele agrupara em torno de. si em Tagasta, o caráter de um mosteiro erudito; sua Regra prevê, como normal, a existência de uma biblioteca; em Marmoutier, os monges de São Martinho, o iniciador do monaquismo na Gália, copiam manuscritos. Uma espécie de reflexo imediato liga o estado de monge ao estudo das letras: coloquemo-nos num contexto completamente estranho à cultura clássica e vejamos São Patrício evangelizar a Irlanda; cada vez que ele escolhe, ou que lhe trazem um jovem para fazer dele um monge, o reflexo aparece: "Ele o batiza e lhe dá um alfabeto". (p. 507)

Escola episcopal.

Sempre houve, agrupado em torno do bispo, todo um corpo eclesiástico: compreendia em particular o grupo dos jovens que, investidos das funções de leitores, se iniciavam na vida clerical. Neste meio normalmente se recrutavam e se formavam os diáconos, os padres e os futuros sucessores do bispo: [...] por esta formação, de caráter absolutamente prático e familiar, os membros do clero recebiam, na falta de seminários e de escolas de teologia, sua instrução dogmática, litúrgica e canônica. Quanto ao mínimo de cultura profana, e, se. posso dizê-Ia, humanista que supunha este ensino, era assegurado pelas escolas do tipo habitual, [...]. (p. 508-509)

A escola presbiterial.

No século VI, enfim, acaba-se de organizar ou de reconstituir, após a tormenta das invasões, a rede das paróquias rurais. O sucesso da evangelização das massas fêz surgir a estrutura estritamente urbana da antiga Igreja, agrupada em torno da sede episcopal. Mas o número de padres é bruscamente multiplicado: como, neste contexto bárbaro, assegurar a formação do clero rural? A solução consistiu em generalizar o sistema já em vigor na escola episcopal: em 529, o II Concílio de Vaison, sem dúvida por iniciativa de São Cesário, prescreveu "a todos os padres encarregados da paróquia receber em suas casas jovens na qualidade de leitores, a fim de educá-Ios cristãmente, de ensinar-Ihes os salmos e as lições da Escritura, e tôda a lei do Senhor, de maneira a poderem preparar para si, entre eles, dignos sucessores". (p. 511)

O inicio das escolas medievais

Acabamos assim de ver todas as instituições que servirão de ponto de partida para o desenvolvimento do sistema da educação medieval. Nos séculos VI-VIl, a que chegamos, este sistema está apenas esboçado: sejam monásticas, sejam seculares, estas escolas têm ainda um horizonte muito limitado: são, se posso dizer, escolas técnicas, que pretendem formar somente monges e clérigos. (p. 512)

Entretanto, na Irlanda pelo menos (onde, podemos supô-Io, uma velha tradição druídica abrira caminho, desde o paganismo), vemos já filhas de reis ou de chefes normalmente confiados a um mosteiro, ao tempo de sua educação: aí conservam seu estatuto laico e, concluída sua formação, voltam ao mundo e retomam a posíção a que pelo nascimento se destinavam. (p. 513)

Não há dúvida que este sentimento se explica, em parte, como efeito da decadência e da barbárie ambiente: o mestre é o homem, difícil de encontrar, capaz de revelar o segrêdo, tornado misterioso, da escrita; testemunha-o este episódio que lemos em Gregório de Tours: um dia, um clérigo giróvago, e que logo se revelaria indigno, apresenta-se ao bispo Etério de Lisieux (por volta de 584) como mestre-escola, litterarum ooctorem. Alegria do prelado, isto é tão raro! Apressa-se ele em reunir as crianças da cidade e em confiar-lhas para que as instrua: o clérigo granjeia a estima de todos, cumulado de obséquios por parte dos pais. E quando o inevitável escândalo irrompe, apressam-se em abafá-Io.
Muito mais ainda: o mestre é aquele que revela não apenas a escritura, mas a Sagrada Escritura. Monástica, episcopal ou presbiterial, a escola não separa a instrução da educação religiosa, da formação dogmática e moral; religião ao mesmo tempo douta e popular, o cristianismo concede ao mais humilde dos seus fiéis, por mais incipiente que seja seu desenvolvimento intelectual, o equivalente àquilo que a altiva cultura antiga reservava à elite de seus filósofos: uma doutrina sobre o ser e sobre a vida, uma vida interior submetida a uma direção espiritual. Segundo a fórmula estereotipada de nossos velhos hagiógrafos, a escola cristã forma a um só tempo litteris et banis moribus "nas letras e nas virtudes". Nesta estreita associação, mesmo no escalão mais elementar, da instrução literária e da educação religiosa, na síntese, na pessoa de um mestre, do instrutor (ou do professor) e do pai espiritual, é que me parece residir a essência mesma da escola cristã, da pedagogia medieval por oposição à antiga. É necessário, desde então, fazer remontar sua aparição aos mosteiros egípcios do século IV. (p. 516)

MARROU, Henri-Irinée. O surgimento das escolas cristãs de tipo medieval. In:___. História da educação na antiguidade. São Paulo: EPU, 1975. p. 502-516.

domingo, 4 de agosto de 2013

O CRISTIANISMO E A EDUCAÇÃO


http://ocontornodasombra.blogspot.com.br/2012/04/pascoa-no-cristianismo-primitivo.html

A educação religiosa

Igreja como tal, por intermédio de um delegado especialmente nomeado para isto, é que instruía o catecúmeno: desde as primeiras gerações cristãs, vemos em função os "mestres", [...] encarregados deste ensino e investidos para seu desempenho de um carisma próprio. A instituição do catecumenado desenvolve-se progressívamente, à medida que se multiplicam os novos convertidos: tomou sua forma definitiva em Roma por volta de 180; exige então uma longa prova, cuja duração está fixada em três anos, durante os quais é ministrado um ensino cuidadosamente programado. Muito cedo, parece, este deixa de ser confiado a "didáscalos" especializados: normalmente, padres são encarregados dele, embora caiba ao bispo dar o último retoque a esta preparação: os discursos catequéticos que conservamos de São Gregório de Nissa, de Cirilo de Jerusalém, de Teodoro de Mopsuéstia, etc., mostram a que notável nível os grandes bispos do século IV haviam elevado seu ensino. Santo Agostinho deu em seu tratado De Catechizandis rubibus (por volta de 405) uma teoria da catequese cujo valor propriamente pedagógico iria, por muitos séculos, assegurar-lhe sucesso. (p. 481)

A escola rabínica

Estas escolas foram estabelecidas por toda a parte: a "casa da instrução", bêt hamidrâsch a "casa do livro", bêt sêfer corresponde à sinagoga, a casa das preces, [...] uma e outra, conjuntamente, representam a alma de toda a comunidade judia: "Por tanto tempo quanto a voz de Jacó soar nas sinagogas e nas escolas, as mãos de Esaú (compreendei, do Império romano perseguidor) não serão vitoriosas." São cercadas de desvelado amor; o mestre, mesmo elementar, é respeitado, enobrecido pelo próprio prestígio da palavra divina que transmite à criança: "Deve-se ter tanta veneração Pelo mestre quanto por Deus", dirá o Talmud. (p. 483-484)

O cristianismo aceita a escola clássica

Tomemos um polemista tão violento, tão extremista quanto Tertuliano. Ninguém sentiu nem analisou melhor o caráter idolátrico e imoral da escola clássica: até o ponto de proibir o ensino aos cristãos como uma profissão totalmente incompatível com a fé, do mesmo modo que a de fabricante de ídolos ou a de astrólogo. Mas, como é inconcebível renunciar aos estudos profanos, sem os quais os estudos religiosos se tornariam impossíveis (é realmente necessário, para começar, aprender a ler), admite, como uma necessidade) que a criança cristã freqüente, como aluna, a mesma escola que proíbe ao mestre. Somente a este cabe reagir com conhecimento de causa, não se deixar penetrar pela idolatria que veiculam o ensino e até o calendário escolar: deve comportar-se como alguém que, em conhecimento de causa, recebe veneno mas se abstém de bebê-lo. (p. 490)

            Os cristãos no ensino clássico

Fato notável, a Igreja não seguiu Tertuliano na rigorosa interdição que ele formulou com relação ao magistério. Por volta de 215, ou seja, ao tempo mesmo em que Tertuliano escrevia seu De Idolatria (211-212), Santo Hipólito de Roma redigia, sem dúvida para o uso de sua comunidade cismática, a Tradição Apostólica) que devia obter, na Síria, no Egito e até na Etiópia, sucesso tão duradouro: ele também cataloga as profissões incompatíveis com a vocação de um cristão; fato notável, ele não se decide a tratar os professores com a mesma severidade que o proxeneta, o histrião ou o fabricante de ídolos: "Se alguém, diz ele, ensina às criancinhas as ciências deste mundo, seria melhor que renunciasse entretanto, se não tem outro meio de vida, escusar-se-lhe-á. "As coleções canônicas derivadas de Hipólito conservam esta tolerância ou a dilatam ainda mais. (p. 491-492)

Não há dúvida ter sido esta a atitude normal da Igreja; com efeito, muitos cristãos ensinaram nas escolas de tipo clássico. O primeiro, cronologicamente, que conhecemos com certeza, é o grande Orígenes, que, com dezessete anos, em 202-203, abriu uma escola de gramática, para prover às necessidades de sua família que, o martírio de seu pai, Leônidas, seguido da confiscação dos bens, deixara sem recursos. Foi tão pouco desprestigiado, em razão disto, pelas autoridades eclesiásticas, que um ano mais tarde seu bispo, Demétrio, lhe confiava o ensino oficial da catequese.
Meio século mais tarde, os cristãos estréiam no ensino superior: em 264, um deles, Anatólio, o futuro bispo de Laodicéia, é chamado por seus concidadãos de Alexandria para ocupar a cátedra ordinária de filosofia aristotélica. Aproximadamente no mesmo tempo, em 268, encontramos na Antioquia um padre, Malquião, que o sacerdócio não ímpede de dirigir uma escola de retórica à maneira helênica 37. (p. 492)

Este curioso episódio merece um pouco mais de atenção: é a primeira perseguição escolar da qual os cristãos foram vitimas, mas seu caráter particular lança uma viva luz na questão que estudamos aqui. Por uma lei de 17 de junho de 362, o imperador Juliano interditava o ensino aos cristãos. O próprio texto da lei falava simplesmente em submeter o exercício da profissão pedagógica à autorização prévia das municipalidades e à sanção imperial, sob pretexto de assegurar a competência e a moralidade do pessoal docente. Mas, por uma circular anexa 42, Juliano precisava o que se devia entender por moralidade. Os cristãos que explicam Homero e Hesíodo sem acreditar nos deuses que estes poetas põem em cena são acusados de falta de franqueza ou de honestidade, pois que ensinam algo em que não acreditam. São intimados a apostatar ou a deixar seu ensino. (p. 492-493)

A lei escolar de Juliano, o Apóstota

Pode-se dizer, sem paradoxo, que, por esta medida, Juliano criava a primeira escola confessional, investida de uma missão de propaganda religiosa. É admirável ver em que atmosfera de perfeita neutralidade se havia desenvolvido o alto ensino nesta segunda metade do século IV. Os mestres são tanto cristãos como pagãos e é seu valor pedagógico que atrai a eles os estudantes, sem distinção de crença. Um pagão convicto como Eunápio orgulha-se de haver sido aluno do cristão Proherésio; São João Crisóstomo, educado embora numa atmosfera bem cristã por sua piedosa mãe Antusa, nem por isso deixou de seguir os cursos do pagão Libânio; e não parece que nem um nem o outro haja corrido o risco de ver-se convertido. . . (p. 493)

A reação dos cristãos foi bastante violenta, contra uma medida por eles considerada como vexatória e humilhante; reação muito engenhosa também: intimados pelo imperador a contentarem-se com "ir às suas igrejas de galileus para ali comentar Mateus e Lucas", recusaram-se a ser assim excluídos do benefício da tradição letrada e impuseram-se como dever improvisar textos de estudo, clássicos de substituição. Esta foi a obra dos dois Apolinários, o pai e o filho, dois professores alexandrinos que tinham vindo tentar fortuna na Laodicéia da Siri a, onde seu zelo pela literatura causou sua momentânea excomunhão. Trataram êles de adaptar o Pentateuco ao estilo homérico, os livros históricos do Antigo Testamento ao estilo dramático e assim por diante, lançando mão de todos os gêneros e de todos os metros, da comédia de Menandro à ode pindárica. Quanto aos escritos do Nôvo Testamento, foram arranjados em diálogos imitados de Platão. (p. 494)

A escassa influência cristã na escola

Poder-se-ia pensar que, quando o número dos mestres e dos alunos cristãos se tornou relativamente preponderante, a escola se viu de fato cristianizada. Bem vejo, por outro lado, que determinado texto canônico, infelizmente difícil de datar (IV, V, VI século?), obriga o gramática cristão a confessar diante dos seus alunos que "os deuses dos gentios não passam de demônios" e que não há outro Deus além do Pai, o Filho e o Espírito Santo; melhor ainda, parece encorajá-lo a "fazer apostolado" (para dizer no jargão moderno): "Ensinar os poetas, está bem, mas se puder comunicar a seus alunos o teor da fé, só terá com isto maior mérito." (p. 494-495)

Pode-se acreditar que estes conselhos foram às vezes seguidos, pois Juliano o Apóstata censura os mestres cristãos por esbulharem os poetas como Homero, acusando-os de ímpiedade, de loucura ou de erros, mas não parece, a julgar pelos documentos que nos restam, que a pedagogia quotidiana haja recebido uma marca da nova religião. (p. 495)

Escolas superiores de teologia

Não há, pois, normalmente, escola cristã para os graus prímário e secundário do ensino. Vemos aparecer, e isto desde meados do século II, escolas superiores de teologia cristã, mas esta instituição não chegará a lançar na Igreja raizes profundas, nem a perpetuar-se. (p. 497)

De fato, foram mestres heréticos, parece, que, em primeiro lugar, deram o exemplo de tal ensino, mas logo tiveram êmulos entre os ortodoxos, como o mostra o caso dos Apologistas, e notadamente do mais célebre entre eles, Justino, o Mártir. Apresentavam-se, de bom grado, ornados com o titulo de filósofos, vestindo seu traje: Eusébio diz-nos de Justino que ele ensinava "com roupa (ou: com ares) de filósofo"; abriram uma verdadeira escola [...], de enderêço conhecido. Eram tão perfeitamente filósofos que se chocavam com a hostilidade, de certo modo profissional, dos seus rivais pagãos, dos predicadores de tendência cínica, como este Crescêncio, que tanto fez São Justino sofrer. (497-498)

Entre os auditores de Justino havia cristãos de nascimento, como Evelpisto, que parece nos atos do seu martírio: Justino não se contentava, pois, com conferências de propaganda dirigida aos pagãos de boa vontade, mas devia ministra um ensino profundo, de grau superior. Notar-se-á que, diferente dos catequistas, estes apologistas não são mandatários da hierarquia: são leigos que ensinam sob a sua própria responsabilidade, “filósofos cristãos”, não doutores da Igreja. (p. 498)

Século III: Roma e Alexandria

Este tipo de ensino durou até o século III: sob esta forma aparece-nos o ensino de Clemente de Alexandria ou de um Hipólito de Roma: os discípulos deste homenagearam-no com uma estátua que o representava como um filósofo ensinando, sentado em um trono (que tem gravada uma lista de sua obras e a tábua do seu cômputo pascal). Este monumento não é único: os monumentos funerários cristãos anteriores à paz constantiana representavam comumente o defunto nas atitudes de um “mestre”, de um filósofo ou de um letrado, meditando ou comentando o Livro Sagrado. (p. 498)

São sempre, contudo, iniciativas de caráter privado. Com base nos testemunhos de Eusébio e de Filipe de Sida, imaginou-se facilmente a existência, em Alexandria, de uma Escola de Letras Sagradas, que durante dois séculos teria tido sucessão regular [...] de mestres qualificados, como a das seitas filosóficas gregas. Na realidade, se Alexendria foi, de Filão o Judeu a São Cirilo, um incomparável meio de intensa atividade doutrinária, judia e depois cristã, sômente depois de Orígenes teve escola oficial de teologia. (p. 498)

Desaparecimento dessas escolas

O clero não é formado nas escolas, mas pelos contatos pessoais com o bispo e os sacerdotes mais idosos, no seio do clero local a que se encontra ligado, freqüentemente muito cedo, desde a infância, na qualidade de leitor.
Assim, do ponto de vista das instituições pedagógicas, há, do século III ao século IV, não progresso, mas regressão formal. Quando São Jerônimo, por exemplo, nos diz que, no decorrer das suas viagens da juventude pelo Oriente, ouviu as aulas de Apolionário em Antioquia, de Didino, o cego, em Alexandria, de Gregório de Nazianza em Constantinopla, deve-se entender que ser trata de aulas particulares, sem caráter professoral, de relações pessoais de homem para homem. (p. 500-501) 

MARROU, Henri-Irinée. O cristianismo e a educação. In:___. História da educação na antiguidade. São Paulo: EPU, 1975. p. 477-501.