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domingo, 11 de agosto de 2013

O SURGIMENTO DAS ESCOLAS CRISTÃS DE TIPO MEDIEVAL

Desde o século IV, vemos, todavia, aparecer um tipo de escola cristã, inteiramente orientada para a vida religiosa e que nada mais tem de antiga; esta escola, porém, de inspiração já totalmente medieval, permanece por longo tempo propriedade de um meio particular e pouco se irradia exteriormente. Trata-se da escola monástica. (p. 502)

A escola monástica no oriente.

Mas nada disso teve grande repercussão. Vê-se, claramente, que o apêlo de Crisostomo é de uma alma exaltada, inteiramente voltada para a perfeição e convencida de que todos são tão sensíveis quanto ele. Nada menos prático que isso que ele imagina: os rapazes permanecerão dez anos, vinte anos, caso necessário, no mosteiro para consolidar-se na virtude; mas qual se toma então sua carreira no século? Ele tem muito cuidado, sem dúvida, em esclarecer que não deseja que estas crianças fiquem sem instrução, mas nada indica que houvesse meios para que se lhas outorgasse no deserto. Se ele nos mostra, uma vez, um monge servindo de preceptor a um rapaz iniciado nos estudos profanos, este é, segundo ele mesmo diz, um caso absolutamente excepcional: é até pelo fato de não se poder generalizá-Io que ele propõe a solução de uma permanência no deserto. (p. 505)

Quanto a São Jerônimo, longe de pensar em generalizar o plano de educação imaginado para Paula (esta com efeito, parece haver correspondido muito mal às esperanças do seu mestre), não parece tampouco que ele mesmo o tenha aplicado de maneira sistemática: corno sabemos, dirigia ele a educação de certo número de jovens latinos que lhe haviam sido confiados no seu mosteiro de Belém, mas o ensino que lhes ministrava seguia os programas clássicos: a gramática, Virgilio, os poetas cômicos e líricos, os historiadores...
São Basílio, corno vimos, não manifestava grande entusiasmo em admitir no claustro crianças cuja vocação religiosa não fôsse certa; à medida que se avança, mais os meios monásticos mostram desconfiança contra esta intrusão, que só pode comprometer a paz e o recolhimento, e afinal, em 451, o Concílio de Calcedônia interditou formalmente a educação, nos conventos, de crianças destinadas a voltar ao século, [...]. Essa interdição será sempre mantida: a escola monástica, em país grego, é, se podemos dizê-lo, para uso interno. (p. 506)

A escola monástica no ocidente.

Nada disso no Ocidente: a lectio divina, a leitura dos Livros santos e antes de tudo do ofício, parece inseparável do pleno exercício da vida monástica. Este caráter letrado é bem manifesto nas origens: Santo Agostinho, que introduziu o monaquismo na África, dera à sua primeira comunidade, que, ainda leiga, ele agrupara em torno de. si em Tagasta, o caráter de um mosteiro erudito; sua Regra prevê, como normal, a existência de uma biblioteca; em Marmoutier, os monges de São Martinho, o iniciador do monaquismo na Gália, copiam manuscritos. Uma espécie de reflexo imediato liga o estado de monge ao estudo das letras: coloquemo-nos num contexto completamente estranho à cultura clássica e vejamos São Patrício evangelizar a Irlanda; cada vez que ele escolhe, ou que lhe trazem um jovem para fazer dele um monge, o reflexo aparece: "Ele o batiza e lhe dá um alfabeto". (p. 507)

Escola episcopal.

Sempre houve, agrupado em torno do bispo, todo um corpo eclesiástico: compreendia em particular o grupo dos jovens que, investidos das funções de leitores, se iniciavam na vida clerical. Neste meio normalmente se recrutavam e se formavam os diáconos, os padres e os futuros sucessores do bispo: [...] por esta formação, de caráter absolutamente prático e familiar, os membros do clero recebiam, na falta de seminários e de escolas de teologia, sua instrução dogmática, litúrgica e canônica. Quanto ao mínimo de cultura profana, e, se. posso dizê-Ia, humanista que supunha este ensino, era assegurado pelas escolas do tipo habitual, [...]. (p. 508-509)

A escola presbiterial.

No século VI, enfim, acaba-se de organizar ou de reconstituir, após a tormenta das invasões, a rede das paróquias rurais. O sucesso da evangelização das massas fêz surgir a estrutura estritamente urbana da antiga Igreja, agrupada em torno da sede episcopal. Mas o número de padres é bruscamente multiplicado: como, neste contexto bárbaro, assegurar a formação do clero rural? A solução consistiu em generalizar o sistema já em vigor na escola episcopal: em 529, o II Concílio de Vaison, sem dúvida por iniciativa de São Cesário, prescreveu "a todos os padres encarregados da paróquia receber em suas casas jovens na qualidade de leitores, a fim de educá-Ios cristãmente, de ensinar-Ihes os salmos e as lições da Escritura, e tôda a lei do Senhor, de maneira a poderem preparar para si, entre eles, dignos sucessores". (p. 511)

O inicio das escolas medievais

Acabamos assim de ver todas as instituições que servirão de ponto de partida para o desenvolvimento do sistema da educação medieval. Nos séculos VI-VIl, a que chegamos, este sistema está apenas esboçado: sejam monásticas, sejam seculares, estas escolas têm ainda um horizonte muito limitado: são, se posso dizer, escolas técnicas, que pretendem formar somente monges e clérigos. (p. 512)

Entretanto, na Irlanda pelo menos (onde, podemos supô-Io, uma velha tradição druídica abrira caminho, desde o paganismo), vemos já filhas de reis ou de chefes normalmente confiados a um mosteiro, ao tempo de sua educação: aí conservam seu estatuto laico e, concluída sua formação, voltam ao mundo e retomam a posíção a que pelo nascimento se destinavam. (p. 513)

Não há dúvida que este sentimento se explica, em parte, como efeito da decadência e da barbárie ambiente: o mestre é o homem, difícil de encontrar, capaz de revelar o segrêdo, tornado misterioso, da escrita; testemunha-o este episódio que lemos em Gregório de Tours: um dia, um clérigo giróvago, e que logo se revelaria indigno, apresenta-se ao bispo Etério de Lisieux (por volta de 584) como mestre-escola, litterarum ooctorem. Alegria do prelado, isto é tão raro! Apressa-se ele em reunir as crianças da cidade e em confiar-lhas para que as instrua: o clérigo granjeia a estima de todos, cumulado de obséquios por parte dos pais. E quando o inevitável escândalo irrompe, apressam-se em abafá-Io.
Muito mais ainda: o mestre é aquele que revela não apenas a escritura, mas a Sagrada Escritura. Monástica, episcopal ou presbiterial, a escola não separa a instrução da educação religiosa, da formação dogmática e moral; religião ao mesmo tempo douta e popular, o cristianismo concede ao mais humilde dos seus fiéis, por mais incipiente que seja seu desenvolvimento intelectual, o equivalente àquilo que a altiva cultura antiga reservava à elite de seus filósofos: uma doutrina sobre o ser e sobre a vida, uma vida interior submetida a uma direção espiritual. Segundo a fórmula estereotipada de nossos velhos hagiógrafos, a escola cristã forma a um só tempo litteris et banis moribus "nas letras e nas virtudes". Nesta estreita associação, mesmo no escalão mais elementar, da instrução literária e da educação religiosa, na síntese, na pessoa de um mestre, do instrutor (ou do professor) e do pai espiritual, é que me parece residir a essência mesma da escola cristã, da pedagogia medieval por oposição à antiga. É necessário, desde então, fazer remontar sua aparição aos mosteiros egípcios do século IV. (p. 516)

MARROU, Henri-Irinée. O surgimento das escolas cristãs de tipo medieval. In:___. História da educação na antiguidade. São Paulo: EPU, 1975. p. 502-516.

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